Transposição do São Francisco: polêmica sem fim
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Imaginada há mais de um século como solução para a seca do Nordeste, a proposta de transposição das águas do maior rio da região continua gerando divergências
Por Sérgio AdeodatoAlmanaque Atualidades Vestibular - 2007
Se depender da vontade do governo federal, o projeto de desviar parte das águas do rio São Francisco para levá-la a regiões do semi-árido nordestino, mais ao norte, que sofrem com a seca, deverá sair do papel em 2006, após quatro anos de debates e polêmica. Em ano eleitoral, o presidente Lula pretende apresentar a obra como um de seus grandes feitos.
O principal argumento do governo: é crítica a situação dos recursos hídricos no Nordeste, onde grandes cidades e algumas capitais correm o risco de colapso no abastecimento e sertanejos andam quilômetros diariamente para buscar água para beber. Reverter esse quadro exige uma política de desenvolvimento e um plano consistente de ações. Nisso todos concordam. Mas não há consenso sobre se a transposição do São Francisco seja a melhor maneira de responder ao problema da seca e às suas conseqüências sociais e econômicas.
Projeto grandioso Ao custo aproximado de 4,5 bilhões de reais, o projeto prevê a retirada de água em dois pontos do rio - um no município de Cabrobó e outro em Petrolândia, ambos em Pernambuco. O primeiro local de captação corresponde ao eixo norte da transposição, no qual os canais percorrerão o interior nordestino para abastecer rios menores e açudes do semi-árido do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O outro desvio, do qual parte o eixo leste, interligará o São Francisco aos mananciais de Pernambuco e da parte leste da Paraíba que secam durante a estiagem. O nome "transposição" para a obra refere-se ao fato de que as águas têm de ser bombeadas para "transpor" os limites da bacia do São Francisco, passando a correr no leito de outras bacias hidrográficas mais ao norte, duramente atingidas pela falta de chuvas, que deixa secos os leitos de diversos rios.
Serão ao todo 722 quilômetros de canais e adutoras que vão transpor terrenos áridos e, em alguns casos, íngremes, até chegar ao destino final. Nos locais mais altos, que atingem 300 metros de altitude, os canais precisarão transpor 12 túneis e a água será empurrada por meio de estações de bombeamento. Pequenas usinas hidrelétricas, previstas na obra, aproveitarão o declive do relevo para gerar energia, recuperando dois terços da eletricidade gasta para bombear a água.
O governo gastará 40 milhões de reais para desapropriar uma faixa de 100 metros nos dois lados dos canais ao longo de todo o percurso. Os canais transportarão 26,4 metros cúbicos por segundo de água - ou seja, apenas 1,4% da vazão média do São Francisco após a barragem de Sobradinho. No entanto, segundo prevê o projeto, esse volume poderá atingir 127 metros cúbicos por segundo quando o rio estiver mais caudaloso, na estação chuvosa.
A quantidade de água desviada é ínfima em comparação ao volume despejado pelo rio no oceano Atlântico, na divisa de Sergipe com Alagoas. Mas é o bastante para alimentar a polêmica em torno do projeto, mesmo depois de ter recebido em 2005 a licença ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a aprovação da Agência Nacional de Águas.
Jogo difícil De um lado, defensores do projeto, como o governo e os quatro estados beneficiados pela transposição, alegam que a quantidade de água que estará disponível por habitante em regiões do semiárido distantes do São Francisco, daqui a 20 anos, de acordo com os estudos, é menos da metade do que o mínimo estabelecido como aceitável pela ONU (que é 1,5 mil litros por pessoa por ano). Para a região banhada pelo rio, a estimativa é que exista o dobro desse limite mínimo em 2025. Quem defende a obra pergunta: "Se uma região precisa tanto de água e outra a tem sobrando, por que não equilibrar essa balança?"
Reduzir a desigualdade no acesso aos recursos hídricos, segundo a corrente dos defensores, é o principal objetivo do projeto. A bacia do São Francisco concentra 63% da água existente no Nordeste, e 95% de sua vazão vai para o mar. Os 5% usados geram energia e abastecem cidades e cultivos agrícolas. Mas, conforme previsões para 2025, a maior parte da população, cerca de dois terços do total, estará concentrada nas bacias dos rios temporários, aqueles que secam na estiagem e retêm somente 22% da água da região.
De seu lado, os críticos, representados por governos dos estados banhados pelo São Francisco, lideranças sociais e entidades de defesa dos ribeirinhos, temem o pior: que uma nova intervenção, mesmo em pequena escala, gere muitos danos ao Velho Chico, já bastante explorado e prejudicado pelas diversas atividades econômicas empreendidas na região desde os tempos da colonização. Para os opositores da obra, como o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, a prioridade deveria ser a revitalização do rio. O comitê de bacia, instituição criada com o apoio do próprio governo federal em todas as regiões brasileiras, reúne os vários setores da sociedade civil com o objetivo de harmonizar os diversos usos do rio e articular soluções para evitar sua deterioração. No caso do São Francisco, a entidade promoveu debates e emitiu em 2005 um parecer contrário à obra da transposição e a favor da revitalização.
Isso significa que, antes de pensar em desviar as águas, o Ministério da Integração Nacional deveria investir em medidas para melhorar a qualidade do São Francisco. Uma seria o reflorestamento das margens, para evitar a erosão, que, em muitos pontos, está entupindo o rio com barro (assoreamento), causando problemas para a navegação e para o equilíbrio ambiental das espécies aquáticas. De acordo com dados da organização não-governamental Articulação no Semi-Árido Brasileiro, 95% da vegetação nativa que cobria a beira do rio já não existe mais. Coletar e tratar o esgoto e abastecer com água a população ribeirinha é outra necessidade. Atualmente, apenas 132 dos 504 municípios banhados pelo São Francisco têm rede de distribuição de água. Nos demais, a população precisa bombear água para plantar e beber, buscar com baldes na beira do rio ou perfurar poços artesianos.
Além dessas medidas, a revitalização significaria promover atividades para o desenvolvimento sustentável e gerar renda na região. Visaria também a reduzir a quantidade de lixo e poluentes, como os agrotóxicos despejados pelas plantações e os resíduos tóxicos liberados pelas indústrias da região metropolitana de Belo Horizonte no rio das Velhas, em Minas Gerais, o maior afluente do São Francisco.
Veja o infográfico.
Faltará energia? A greve de fome do bispo Luiz Cappio, de Barra (BA), em setmebro de 2005, acirrou a polêmica e adiou a transposição que estava pronta para sair da gaveta. Mais tarde, a idéia acabou barrada por liminares obtidas na Justiça por opositores do projeto - no caso, o governo da Bahia e do Sergipe. Até o fim de janeiro de 2006 uma delas ainda não havia sido julgada.
O debate é antigo: vem desde 1847, quando o imperador dom Pedro II propôs pela primeira vez a obra. Depois, arrastou-se pela República como solução para acabar com a seca, que, de tempo em tempo, fazia milhares de flagelados. Engenhosos, os projetos acabaram morrendo por falta de tecnologia segura para desviar o rio ou pelo altíssimo custo da obra da forma como vinha sendo proposta.
Novos argumentos contra e a favor vêm à baila. Um dos principais temores é com relação à geração de energia. Atualmente, as hidrelétricas do São Francisco geram 95% da eletricidade consumida no Nordeste. Quais seriam os riscos de retirar uma parte da água? Para os defensores do projeto, a queda na geração de energia será pequena e não trará problemas, até porque a região está interligada ao sistema nacional de distribuição de energia, podendo receber eletricidade produzida por outros rios longe dali. Já os críticos advertem que o pequeno volume de água desviado pela transposição pode ser muito significativo na seca, quando a vazão do rio é bem menor, prejudicando o abastecimento de energia.
Outras críticas
Para pagar a obra e manter o sistema de canais funcionando, o preço da água cobrado aos consumidores será maior do que o previsto inicialmente. Os mentores do projeto admitem a diferença, mas argumentam que o valor da conta será no máximo 7% maior e que isso representa muito menos do que pagar pela água fornecida por carros-pipa. Há cálculos, no entanto, que prevêem um aumento maior, o que poderia levar à inadimplência, porque a maior parte da população atendida é muito pobre.
Além desse, um fator que preocupa é o real destino que terá a água retirada do São Francisco. Embora o governo federal garanta que a prioridade será o abastecimento da população, os opositores advertem que será muito difícil fazer esse controle e, no fim das contas, grande parte da água poderá ser usada para irrigar cultivos de grandes propriedades rurais, seguindo os padrões atuais de uso de água na região. Hoje, 80% da água do São Francisco vai para as plantações, e não para o consumo humano.
Os canais abastecerão açudes estratégicos, como o Castanhão, no Ceará, e o Engenheiro Ávidos, na Paraíba. Os governos estaduais terão de construir adutoras e outros canais para levar a água até as cidades e depois distruibuí-la para as residências. O governo diz que várias obras regionais já começaram, como o Canal da Integração, no Ceará, que ligará o açude Castanhão à região metropolitana de Fortaleza. Suspeita-se que nem todas as obras necessárias para fazer a água chegar a quem mais precisa serão realizadas, seja por falta de verbas, seja por incapacidade dos estados em administrar esses empreendimentos.
Só com esses investimentos adicionais, a transposição - se realizada - atingirá o objetivo de beneficiar 12 milhões de habitantes no semi-árido. Há quem prefira dar prioridade a soluções mais simples e baratas, como a construção em massa de cisternas para captação de água da chuva ao lado das casas, iniciativa vista apenas como "complementar" pelos defensores da transposição. Será que a obra livrará a população dos carros-pipa pagos por políticos em troca de votos? Será que os moradores dessas regiões áridas, tendo água para beber e plantar, conseguirão uma chance de crescer por conta própria, sem depender dos "coronéis" ou das rezas para os santos mandarem chuva? Com que custo ambiental isso seria suportável para o São Francisco? Muitas dúvidas pairam no ar. Nesse jogo que envolve vários interesses, tanto os ribeirinhos que temem a destruição do rio como os sertanejos que esperam pela água da prometida transposição desejam um desfecho que melhore a qualidade de sua vida.
Resumo: rio São Francisco- Transposição de águas:
para levar água a quem não tem no seco Nordeste brasileiro, o governo pretende iniciar em 2006 a transposição das águas do rio São Francisco. Uma parte da água do rio será desviada por canais para rios menores e açudes nas regiões fora da bacia do rio que mais sofrem com a seca.
- Escassez de água: as previsões para 2025 são que a quantidade de água disponível por habitante no semi-árido nordestino longe do São Francisco será menos da metade do que a ONU estabelece como limite mínimo para a vida humana.
- Críticos: não há consenso sobre se a obra é a melhor maneira de acabar com a seca e com seus efeitos sociais e econômicos. Os críticos propõem soluções mais simples e baratas, como a construção de cisternas para captar e armazenar a água da chuva ao lado das casas. Desconfiam também de que a água desviada do São Francisco possa não chegar para quem precisa.
- Defensores: quem defende o projeto alega que a pequena quantidade de água a ser retirada do rio, 1,4% do volume que deságua no oceano Atlântico, não causará prejuízos. Essa água deixará vários açudes do Ceará, da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte sempre cheios, evitando o colapso no abastecimento durante a seca.
- Revitalização: Os estados banhados pelo rio, que são contra a obra - Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas -, argumentam que, mesmo sendo pequena a quantidade de água retirada do rio, isso pode afetar a geração de energia pelas hidrelétricas e ser prejudicial para um rio que já sofreu diversos impactos desde o tempo da colonização do Brasil. A erosão das margens desmatadas, o lixo e a poluição dos agrotóxicos são problemas difíceis de resolver. A solução desses males - chamada de revitalização do rio São Francisco - é, para os opositores da transposição, mais importante do que desviar as águas do rio.
Se depender da vontade do governo federal, o projeto de desviar parte das águas do rio São Francisco para levá-la a regiões do semi-árido nordestino, mais ao norte, que sofrem com a seca, deverá sair do papel em 2006, após quatro anos de debates e polêmica. Em ano eleitoral, o presidente Lula pretende apresentar a obra como um de seus grandes feitos.
O principal argumento do governo: é crítica a situação dos recursos hídricos no Nordeste, onde grandes cidades e algumas capitais correm o risco de colapso no abastecimento e sertanejos andam quilômetros diariamente para buscar água para beber. Reverter esse quadro exige uma política de desenvolvimento e um plano consistente de ações. Nisso todos concordam. Mas não há consenso sobre se a transposição do São Francisco seja a melhor maneira de responder ao problema da seca e às suas conseqüências sociais e econômicas.
Projeto grandioso
Ao custo aproximado de 4,5 bilhões de reais, o projeto prevê a retirada de água em dois pontos do rio - um no município de Cabrobó e outro em Petrolândia, ambos em Pernambuco. O primeiro local de captação corresponde ao eixo norte da transposição, no qual os canais percorrerão o interior nordestino para abastecer rios menores e açudes do semi-árido do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O outro desvio, do qual parte o eixo leste, interligará o São Francisco aos mananciais de Pernambuco e da parte leste da Paraíba que secam durante a estiagem. O nome "transposição" para a obra refere-se ao fato de que as águas têm de ser bombeadas para "transpor" os limites da bacia do São Francisco, passando a correr no leito de outras bacias hidrográficas mais ao norte, duramente atingidas pela falta de chuvas, que deixa secos os leitos de diversos rios.
Serão ao todo 722 quilômetros de canais e adutoras que vão transpor terrenos áridos e, em alguns casos, íngremes, até chegar ao destino final. Nos locais mais altos, que atingem 300 metros de altitude, os canais precisarão transpor 12 túneis e a água será empurrada por meio de estações de bombeamento. Pequenas usinas hidrelétricas, previstas na obra, aproveitarão o declive do relevo para gerar energia, recuperando dois terços da eletricidade gasta para bombear a água.